domingo, 18 de julho de 2010



Boa noite, minha querida. Já está confortável debaixo de suas cobertas? Bom, então vou contar a história que prometi.

Aconteceu quando eu tinha mais ou menos sua idade, uns doze anos, quase treze. Eu dormia exatamente como você, sabia? De barriga pra cima e coberto da cabeça aos pés. Meu pai dizia que eu ficava parecendo um morto no necrotério. Ah, papai... Foi por causa dele que tivemos que sair de Curitiba e nos mudar pro interior. Motivos profissionais.

Bom, a cidadezinha era legal até, muito bonita e arborizada, tinha bastante espaço pra andar de bicicleta e tudo mais. Mas também tinha lá seus problemas, tipo, no começo as pessoas olhavam pra mim como se eu fosse um alienígena. Nada pessoal, qualquer um que vinha de fora recebia o mesmo tratamento caloroso. Demorei pra fazer amigos e... Ah, eu já contei isso antes, né? Esquece, vamos voltar ao principal.

O maior problema daquele lugar era o clima, muito mais quente do que eu estava acostumado. As noites abafadas não traziam alívio. Eu queria deixar o ventilador ligado no máximo em minha direção, mas mamãe não deixava. Dizia que eu ficaria doente, então me obrigava a mantê-lo virado pro outro lado, apenas para circular o ar. Estávamos sem dinheiro para comprar um ar condicionado, e ficar com a janela aberta estava fora de questão. Mania de cidade grande, deixar tudo fechado.

Continuei dormindo do mesmo jeito, todo encoberto. Eu já não acreditava que algo agarraria meu tornozelo se ele ficasse para fora, porém o hábito de infância estava enraizado. Pra não morrer cozido, tive que substituir os cobertores por um lençol. Mesmo assim ainda esquentava bastante, eu dormia mal e acordava encharcado de suor.

Então, numa noite que fazia a gente acreditar em coisas como combustão humana espontânea, resolvi largar aquele hábito idiota de uma vez por todas. Porém, ficar com o corpo inteiro descoberto seria um passo muito grande, então deixei apenas a cabeça e os braços para fora. Aliviou o calor um pouquinho. Já era alguma coisa, mas por outro lado, comecei a me sentir incomodado, vulnerável. Como não precisaria acordar cedo na manhã seguinte – era noite de sábado pra domingo – resolvi insistir naquilo, até que finalmente consegui.

Consegui perder o sono.
Fiquei deitado de olhos abertos, pensando em como a vida podia ser um chute no saco de vez em quando. E assim fiquei durante um tempão, até perceber um movimento vindo do armário. Parecia que uma das portas estava se abrindo.

De início, achei que era um vento mais forte passando entre as frestas da janela, mas as cortinas estavam paradas. Fiquei olhando na direção da porta como se estivesse hipnotizado, a abertura ficando cada vez maior. Comecei a ficar com medo, e me cobri inteiro com o lençol.

Não é nada, pensei, isso acontece de vez em quando. Portas que não estão bem fechadas acabam se movimentando sozinhas. Sim, eu repetia esse pensamento sem parar, mas não conseguia afastar aquela impressão cada vez mais forte.

A sensação de que alguém havia saído de dentro do guarda-roupa, e agora estava parado ao meu lado.
Fiquei imóvel, tentando não respirar ou emitir qualquer som, o coração batendo tão forte que chegava a ser doloroso. Assim permaneci durante um bom tempo, até a sensação acabar.
Não tive coragem de conferir se aquilo havia ido embora. Só quando a luz da manhã atravessou as fissuras da janela, consegui adormecer.

Acordei com minha mãe chamando para almoçar. Tirei o lençol do rosto e olhei pra porta que havia visto se abrir durante a noite. Estava fechada. Puxei-a após um momento de hesitação, e como você deve imaginar, não havia nada ali dentro. Minto, havia camisetas e calças penduradas, nada que me deixasse propenso a fugir gritando. À luz do dia, foi muito fácil concluir que havia imaginado tudo.

Quando a noite chegou, eu já não tinha tanta certeza.
Mas não podia falar nada pros meus pais. Papai me daria uma bronca, afinal eu estava velho demais pra ter medo do bicho-papão, e mamãe confiscaria todos os meus gibis de terror. Aqueles antigos, sabe, tipo “Histórias Reais de Drácula” ou “de Lobisomem”... Mais uma vez revistei o armário inteiro, à procura de qualquer coisa estranha. Não encontrei nada, e pra mim estava ok.
Apaguei a luz e fui pra cama, me cobrindo todo. Tá, não havia nada para me preocupar, mas já havia perdido a vontade de abandonar o costume. Além disso, aquela noite estava menos quente, dava pra dormir numa boa. Dormi mesmo, só que acordei com sede durante a madrugada. Sempre deixava um copo de água no criado mudo, mas agora estava meio receoso de estender o braço para pegar. Fiquei nessa dúvida até a secura em minha garganta se tornar insuportável, então tirei o lençol do rosto e olhei pro armário, só pra me certificar que estaria fechado.
Não estava.

Fiquei imóvel, olhando para a porta até meus olhos se acostumarem com a escuridão. Sim, não havia dúvida, estava entreaberta, mas e daí? Dessa vez eu não estava assustado! Bom, não muito. Sentei na beirada da cama e fiquei parado por alguns momentos, tomando coragem para ficar em pé e fechar aquele maldito guarda-roupa. Isso acabaria com meu medo de uma vez por todas. Respirei fundo e levantei, caminhando rápido até o móvel aberto.
Quando comecei a empurrar a porta, uma mão pálida saiu lá de dentro e tentou agarrar meu pulso.

O que aconteceu no instante seguinte eu não lembro. Lembro apenas de estar novamente em minha cama, escondido embaixo do lençol. Sim, teria sido mais inteligente correr até o quarto dos meus pais, mas naquela hora não pensei em mais nada, estava aterrorizado. De maneira frenética, testei com os pés se o lençol ainda estava bem preso embaixo do colchão, e cerrei os punhos sobre a beirada que cobria minha cabeça. Antes que tivesse tempo de negar o que havia visto, senti que o fantasma vinha em minha direção. Não, não estava vendo ele, mas sua presença era tão intensa que dava no mesmo. Eu queria gritar, mas estava paralisado.

Aquilo estava chegando cada vez mais perto, com os braços estendidos.
Minha bexiga se soltou, acrescentando vergonha ao terror absoluto. Cerrei os dentes, esperando o momento em que aquelas mãos de cadáver iriam me arrastar pra fora da cama. Elas já estavam a centímetros do meu pescoço...
E então pararam.
A coisa ficou imóvel durante um longo tempo, depois afastou os braços e começou a caminhar ao redor da minha cama.

Procurava alguma coisa, talvez uma parte desprotegida.
Isso me deu esperanças, achei que se estivesse totalmente coberto, a assombração não conseguiria me pegar. E assim esperei, na expectativa, a garganta tão seca que chegava a doer. Eu tremia e soluçava baixinho, rezando para aquilo ir embora. Se funcionou eu não sei, pois em algum momento perdi os sentidos.

Acordei na manhã seguinte, com meu pai chamando para ir à escola. Pulei da cama e o abracei, chorando, sem me importar se levaria bronca ou não. Criança é tão boba... É óbvio que meu pai não brigou comigo, apenas me abraçou bem forte e perguntou o que havia acontecido. Mamãe também despertou e fomos todos pra cozinha, onde contei tudo. Nossa, eles foram tão legais, me acalmaram e disseram que havia sido um pesadelo, essa coisa básica, mas em compensação não me trataram como aqueles pais idiotas dos filmes de terror, que negam tudo até ser tarde demais. Deus, como sinto saudades deles...

Revistaram o quarto junto comigo, e nem falaram nada sobre o cheiro de urina em minha cama e pijama. Claro, não encontramos nada de anormal, mas eu ainda estava alarmado. Mamãe disse que eu poderia dormir com eles até meu medo passar. Adivinha se não aceitei?

Como não compartilhavam da minha mania de dormir coberto, tive que me enrolar inteiro no meu lençol. Papai disse que eu já não era mais um morto no necrotério, e sim uma múmia. Bom, você pode achar que tudo ficou bem, agora que eu estava no meio de dois adultos, certo? Quem me dera.

Naquela mesma noite, o fantasma retornou.
Saiu do guarda-roupa dos meus pais, provocando um rangido abafado na dobradiça, depois ficou me rondando com avidez. Aterrorizado, comecei a dar cotoveladas na minha mãe, tomando cuidado para não sair do meu casulo. No momento que ela acordou, senti aquilo indo embora. Mamãe acendeu o abajur, olhou pelo quarto – o armário estava fechado de novo - e me garantiu que não havia nada ali.
Assim que ela voltou a dormir, escutei aquele rangido de novo. Acordei-a de novo e tudo se repetiu, com a diferença de que agora havia uma leve impaciência em sua voz. Tentei despertar meu pai na outra vez, mas ele tinha um sono pesado demais. Resignei-me e esperei quietinho, até a aparição desistir.

Aquilo se repetiu por muitas noites. Meus pais insistiam que eu estava sonhando, ou então era o medo me fazendo ver coisas que não existiam. O medo podia fazer a manga de uma camisa ficar parecida com um braço, que tentava puxar a gente para um lugar escuro. Fazia sentido pra eles, e eu me desesperava por não poder provar que estavam errados.

Comecei a sofrer de insônia, queria que a luz ficasse acesa, me recusava a voltar ao meu quarto. Meus pais foram ficando cada vez mais preocupados, achando que aquela fase não era tão passageira quanto supunham. Fizeram minha vontade e tiraram o guarda-roupa do quarto deles. Eu lembro bem dessa noite, porque fiquei mais relaxado e até me arrisquei a dar uma espiada fora do lençol. O abajur estava aceso e fiquei passando os olhos por todo o recinto, na expectativa. Estava quase me cobrindo de novo, quando percebi alguém escondido atrás da cortina.
Ah, dessa vez eu consegui gritar. E como.

É óbvio que não havia nada lá quando meus pais acordaram, e no dia seguinte, me levaram a um psicólogo. Ele disse umas coisas interessantes, que eu estava estressado com a mudança de ambiente e com a solidão, além disso era normal ter medo naquela idade. À medida que fosse crescendo, meu temor iria diminuir de forma gradativa. Nisso ele estava certo, mas demorou algum tempo.

Todas as noites antes de deitar, eu precisava conferir obsessivamente se meu cobertor estava bem preso embaixo do colchão, com medo que se soltasse durante a noite. Nos mudamos de casa e eu ganhei um quarto sem móveis ou cortina, apenas minha cama. Desolado, descobri que o visitante noturno não precisava de nada disso para me encontrar, embora tivesse uma estranha preferência por guarda-roupas.

As noites de terror só acabaram quando comecei a tomar remédios para dormir. Coisa forte mesmo, tarja preta. Logo que eu engolia os comprimidos, corria pra cama e me enrolava em meu escudo de tecido, então esperava aquele doce torpor me envolver.

Os meses foram passando e arranjei alguns amigos. Aquela história de “medo pregando peças” parecia cada vez mais verossímil. Os anos vieram sem eu perceber, minha voz engrossou e comecei a me interessar pelas garotas.

O fantasma era apenas uma lembrança distante quando comecei a diminuir a medicação.
Ainda acordei algumas madrugadas com a impressão de não estar sozinho, porém era bem mais tênue dessa vez. Bastava pensar em outra coisa, e aquilo acabava. Meu temor foi enfraquecendo aos poucos, então um dia, sem mais nem menos, a sensação acabou para sempre.
Eu havia crescido.

Continuei dormindo todo encoberto, mas isso era novamente um hábito, não uma compulsão. Entrei na faculdade e fui morar numa república de estudantes. Agora, eu só lembrava das minhas aventuras de infância quando alguém da roda começava a contar histórias de terror. Eu contava minhas experiências - sempre omitindo o fato de ter mijado na cama - e meus relatos faziam bastante sucesso. Mas eu acho que a Carol nem prestou atenção. Ela era minha namorada na época, e foi ela que levantou meu lençol na primeira noite que passávamos juntos. Lembro de acordar meio sonolento com ela perguntando “por que está dormindo desse jeito, seu bobo?”.
O fantasma agarrou meu pescoço antes que eu tivesse tempo de responder.

Puxou-me pra fora da cama e começou a me arrastar em direção à porta do armário, num pesadelo cego de luzes apagadas. Minha namorada berrava de forma histérica, sem entender o que estava acontecendo. Eu esperneava e lutava em pânico, sem conseguir me livrar dos dedos gelados que esmagavam minha traquéia. Ainda tentei me segurar na beirada do guarda-roupa. Farpas entraram na minha mão e duas ou três unhas se quebraram, sendo arrancadas da minha carne. Nem me importei com a dor, só queria escapar.

Não adiantou.
Quando senti o tecido das roupas deslizando por meu rosto, desmaiei.

Desmaiei ou morri.

Não sei quanto tempo fiquei inconsciente, só lembro que quando abri os olhos, havia apenas escuridão. No instante seguinte, escutei o grito da assombração que me trouxera até ali. Estava me procurando. Fugi para bem longe, até os urros de frustração se tornarem meros sussurros ecoando nas trevas.

Vaguei durante muito tempo sozinho, gritando por socorro. Muitas vezes ouvi outros pedidos de ajuda, na maioria com vozes de crianças. Em outras ocasiões, escutei apenas berros insanos. Nunca encontrei ninguém. A solidão se tornou desesperadora e já estava quase enlouquecendo, quando bati em algo. Parecia a porta de um guarda-roupa.

Empurrei e cheguei aqui, no seu quarto.

Desde então, volto todas as noites. Sei que não pode me escutar, mesmo assim eu converso com você para espantar minha própria solidão. Vejo pelas fotos que está crescendo rápido. Não cometi o erro de ser visto, então logo você não sentirá mais minha presença. Vai concluir que eu não existo, aí será só questão de tempo para que abaixe o cobertor, deixando seu pescoço ou braço desprotegido.

Serei mais inteligente do que a coisa que me raptou.

Quando eu te puxar para dentro do armário, nunca mais vou te soltar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário